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Personagem real numa vida de ficção e "à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo".
Queres que fale de crianças... Para mim não é fácil. Não nutro empatia com elas e nem elas por mim. Gosto de as ver a brincar ao longe, de forma a não as conseguir ouvir.
Gosto de pegar num bébé ao colo, até gosto de ver e de sentir aquele projecto de ser humano, tão indefeso, tão puro, tão quentinho, a cheirar bem, a apertar os dedos, a olhar para nós a tentar perceber quem somos e então quando eles soltam aquelas gargalhadas típicas de bébé, é de derreter o coração.
Conheci um grupo de crianças e vou tendo algum contacto com elas, as chamadas crianças de risco, já deves ter ouvido falar.
A Jéssica, é uma Açoriana que está cá há uns quatro anos mas ainda tem aquele sotaque serrado. Tem 16 anos. Nos Açores estava numa família de acolhimento mas segundo contou não era a família perfeita. Não sei o que aconteceu aos pais dela para ter ido parar ali. Com 12 anos começou a fumar cigarros. Lá na escola rapidamente se tornou uma "marginal" por só querer estar ao pé dos rapazes e raparigas que fumam e dos cigarros aos charros e à erva foi um repente. Em casa não se importavam muito com ela, as notas da escola, o que ela fazia, as companhias com quem andava não era a principal preocupação. A preocupação daquela mãe de acolhimento era ter cigarros para fumar e cerveja para beber. Passado pouco tempo constou-se e verificou-se ser verdade, ela andava com um senhor de 60 anos. Consequencias para a família de adopção, se houve ela não sabe mas continuam a obter rendimentos da Segurança Social através do acolhimento de crianças. Ainda tem amigos de lá que lhe telefonam, dos quais sente saudades e à pouco tempo disseram-lhe que ela tem agora um irmão novo.
Veio para o continente e embora agora esteja adaptada, no inicio era uma miúda revoltada, rebelde, não acatava ordens e quando cismava que queria qualquer coisa nova, não descansava até a ter, nem que para isso tivesse que partir o velho. Fez isso com uns óculos. Dizia que os óculos comprados nos Açores lhe faziam lembrar os pais adoptivos e por isso queria uns novos. Tanto andou que para levar a dela adiante partiu os velhos e tiveram que lhe comprar uns novos. Era mal criada com as outras crianças, com os responsáveis, com os professores na escola. Ainda é um bocadinho, ainda fuma às escondidas, pede cigarros aos amigos da escola. A Jéssica foi e teve tudo o que uma criança com 12 anos não deve ser nem deve experimentar.
"Eu aqui estou feliz e dos Açores, tenho saudades dos meus amigos e dos meus primos. Não queria voltar para lá." disse-me ela.
A Filipa é uma menina linda com agora 8 anos, tem os olhos azuis, é muito dócil, muito simpática, muito tímida,é raro ouvir-lhe a voz mas quando fala, tem um timbre de mulher adulta. Ela e a irmã vieram do Porto de um daqueles bairros que pelas piores razões, de vez em quando aparecem nos telejornais. A mãe ao que parece deixava-as em casa sozinhas para ir ganhar dinheiro para a droga a vender o corpo. Não era raro levar os clientes para casa, para o quarto ao lado onde as meninas dormiam. Está ali há uns 5 anos. Ao fim de semana, de vez em quando, vai visitar os avós, a mãe está proibida de as ver.
O Pedro é o poeta lá do sítio. Anda a tirar um curso profissional de mecânica e está a adorar. Muito bom aluno, muito atento, muito interessado por tudo. Ajuda os mais novos nos trabalhos de casa e a estudarem. Não sei a história do passado dele mas sei esteve durante meses sem abrir a boca, sem falar. Agora fala pelos cotovelos e é lambareiro como ninguém.
A Maíta, veio da Guiné com 10 anos para ser tratada no Hospital S. João a um problema grave de saúde. Veio sozinha e enquanto aguardava que os tratamentos terminassem ficou naquele centro. Ela tem família na Guiné, que a estima, que a acarinha, que se preocupa com ela. Enquanto cá esteve ensinou aqueles meninos e meninas a poupar recursos, explicou-lhes qual era a realidade do país dela. Ficou impressionada com os computadores e telemóveis e com as roupas que via por aqui.
Ensinou-os a dançar dunumba, que eu acho ser uma dança tradicional do país dela. Já voltou há muito tempo à Guiné e está bem.
Estas são algumas das crianças que me comovem, de quem eu gosto e muito. São crianças que com tão pouca idade já passaram por coisas que com o dobro da idade delas nunca sequer experimentei. São crianças que dão valor a um bolo que se lhes leve, a um livro, a um conjunto de marcadores ou lápis de cor. Sao seres humanos que não tiveram sorte com o pilar mais sólido que se deve ter, a familia.
Isto não é uma história, é o relato de uma realidade e muitas mais e bem piores haverão por aí.
Texto escrito por Alice para a Fábrica de Histórias.